terça-feira, 22 de junho de 2010

Mais uma vez


-Sentou com dificuldade na cama. Os músculos e articulações não eram mais como antigamente. Tirou os chinelos de quarto, já gastos, já usados, tão adaptados ao formato dos pés. Pés cansados, enrugados, doloridos. Mas que já suportaram muito mais do que somente o próprio peso do corpo. Ficou assim, a observa-los por um instante. Sorriu. Lábios secos. Olhos também. Levantou as mãos, acariciou levemente o rosto. Trazia nele os sinais irreparaveis de toda uma vida. Marcas, umas profundas, outras nem tanto, mais todas dizendo claramente que cada sentimento e emoção haviam sido intensos. Suspirou e lentamente, aos poucos, foi se deitando. Esticando o velho corpo pela velha cama, o colchão também continha o formato do corpo. Encostou a cabeça no travesseiro e fechou os olhos por um minuto. Milhões de lembraças invadiram o pensamento. Se viu criança, de olhos brilhantes, correndo pelo gramado em frente a casa, olhava para trás e sorria para os pais. As brincadeiras de roda. De pegar. De esconder. De brincar na rua. Se viu adolescente, bonita, com o vestido costurado pela mãe. Passeando na pracinha. Paquerando os moços. Sorrindo com os lábios novos, vermelhos, jovens. Agora já era mulher, adulta, casada. Cuidava da casa, sempre impecável. Cozinhar então, admiravelmente bem. O marido sempre elogiava. Se amavam tanto. Deitada ali, na cama, no quarto escuro, uma lágrima rolou silenciosa quando pensou no marido. Ele havia partido primeiro que ela. A dor foi lacinante. Quase real. Os primeiros dias sozinha, depois de dividir uma vida. Mas, com o tempo, a ausência deixa de ser uma ferida para se tornar um buraco e acostuma-se com buracos. Os filhos crescidos, sairam de casa um a um. Depois entravam os netos, os almoços de domingo, as festas em familia. Com o tempo tudo foi ficando mais lento, mais calmo. Ela mesma estava mais tranquila, serena. Esperando somente. Esperando. Se voltou totalmente para o momento presente. Estava em sua casa. Deitada em sua casa. E sabia que acabaria assim. Simplesmente sabia. A respiração foi se tornando lenta. Tudo foi se tornando embaçado. Não sentiu medo. Afinal, a morte é somente mais uma viagem. A última viagem. Fechou os olhos. Foi como dormir. Acordou jovem, vestindo o vestido custurado pela mãe. Ao seu lado, seu marido, também jovem. Sorriram e se olharam. Finalmente juntos. Eternamente juntos, enfim.

5 comentários:

  1. Wow!!!
    Estou sem palavras...
    Maravilhoso!!!

    Bjs

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  2. Depois de águas turbulentas sempre haverá a calmaria de um lago. Sempre.

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  3. adorei carol .
    muito bom mesmo!
    olha, teu blog está entre os meus preferidos (com toda certeza!) .
    Adoro como tu viaja com as palavras, e nos aproxima a cada sentimento contido em cada frase..
    muito bom. lindo.
    bjo .

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  4. Me lembrou o filme !Diário de uma paixão', tão lindo quanto o seu texto, por sinal. :)

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  5. Que lindooo! A morte é apenas um detalhe, não um fim.. Talvez uma pausa (:

    Beijos!

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